Friday, September 23, 2011

No fundo do poço tem osso



NO FUNDO DO POÇO TEM OSSO, TEM OSSO
Escrito por Valter Marques
     O sol cobria de claridade o caminho em terra batida, calcada e recalcada ao longo dos anos. Os raios luminosos tornavam afável a paisagem inóspita. Era um sentimento enganador e fugaz, com a chegada da noite as cores desapareceriam e o escuro frio ressurgiria. A viagem para as regiões do Noroeste era longa e dura. Penosa para os passageiros que seguiam na carruagem, vergando e saltando ao ritmo dos obstáculos, e principalmente para a dupla de cavalos sarapintados, a força motriz do conjunto, instigados sem piedade pelo condutor. Os animais corriam há horas sem descanso, corriam, sem abrandar. O barulho dos cascos na terra batida abria caminho. No interior do veículo encontravam-se dois irmãos, Rute e Afonso Saraiva. Viajavam há quatro dias com pouquíssimas pausas, apenas as estritamente necessárias para os cavalos descansarem e comerem. Se a fuga fosse um ato de pouca valentia, então os manos eram covardes. Eles fugiam da miséria e falta de oportunidades da aldeia isolada e esquecida onde viviam. Retiravam a favor das promessas e sonhos que vinham das cidades prósperas do Norte.
    ─ Atchim!
    ─ Já não passas cá outro inverno! ─ Afirmou Afonso com marotice.
    ─ Ai! Não digas isso nem a brincar. Estou farta desta viagem e desta carroça esburacada, entra frio e vento por tudo quanto é lado. Já vi madeira carunchosa com menos túneis…
    ─ Tem que ser assim mana, temos que ser fortes. Não penses no frio, pensa no calor. No sol a bater nas costas, a enxada nas mãos e a pele barrenta da mistura feita com pó da terra e suor da testa. Eu, só de pensar, fico logo com os calores!
    ─ Questiono-me por que tem que ser assim, este salto no escuro, porquê!? E se as coisas não correrem bem? Que nos vai acontecer? Lá não vamos ter quem nos ajude…
    ─ O primo Avelino vive nessas partes! Encontrá-lo-emos pela certa. - Tentava reconfortar a irmã, que era alvo do seu desvelo.
    ─ Nunca mais tivemos notícias dele, poderá já nem lá estar, se calhar nem neste mundo.
   ─ Não digas isso! Queres acabar da mesma forma que os nossos pais, puídos e lastimando-se na miséria?
    ─ Não nasci para ser rica, nasci para ser feliz…. - Expirou Rute profundamente enquanto olhava as espirais de pó desenrolando-se lá fora. A escuridão caía rapidamente. No último dia não tinham encontrado qualquer sinal de civilização, nem sequer outros viandantes. A luz ténue vinda da hospedaria, em terreno mais alto, era bem-vinda. A silhueta retangular da construção destacava-se no céu gradiente de violeta, púrpura até índigo. Embora não se encontrasse muito distante deles, por causa do caminho alcantilado e sinuoso, ainda gastariam parte da hora a atingirem-no.

    ─ Papá! Posso ir brincar lá para fora?
    ─ Agora não, aproximam-se pessoas. - Afirmou Fernando Barão taxativamente. Era um homem de altura média, tinha um corpo seco e uma cara ossuda, pouco afável e, quando não sorria, intimidante. Talvez por isso, ou tique nervoso, envergava quase sempre um esgar prazenteiro. Um sorriso peculiar sob um bigode mal aparado, farfalhudo e farfante que ultrapassava os limites dos lábios. Usava uns óculos de lentes densas, a grossura do vidro permitia-lhe ver, porém tornavam os seus olhos invisíveis aos outros. - Uma hospedaria necessita de hóspedes. - Desenvolveu ele à sua filha. A pequena Filipa bateu energicamente com o pé no tapete, demonstrando o seu descontentamento. Com uma década de vida já aprendera que não valia a pena argumentar. A vontade do pai era inabalável e as suas ordens para cumprir. Adiou a hora de brincadeira para mais tarde.

    Os viajantes abandonaram a via principal, escolhendo na encruzilhada a direção da hospedaria. O trilho de algumas centenas de metros encontrava-se em estado aceitável de conservação. Livres, temporariamente, das depressões e obstáculos, avançaram mais rápido. Com a chegada iminente ao albergue, um sentimento de alívio instalou-se no grupo. Algo que não teriam mais tempo para apreciar. Nesse momento seres animalescos com fisionomia demoníaca surgiram das trevas. Os cavalos assustados relincharam. Um rincho gritante, audível a grande distância. O cocheiro instigou os animais a prosseguirem. A luz das candeias em folha-de-flandres revelou as figuras grotescas, com forma humanoide, porém quadrupedantes. As animálias saltando das bermas cruzavam o caminho. As presas brancas sobressaíam na pele couraçada e piche, rasgando as feições num rosnar aterrador. No alpendre mais à frente um vulto movimentava-se na penumbra. BOOM! BUM! Uma arma foi disparada. Os perseguidores recuaram prontamente para a segurança da obscuridade. Apercebendo-se da proximidade da casa e choque iminente, o cocheiro puxou as rédeas. Os equídeos domesticados firmaram as patas, falhando por pouco os primeiros degraus da escadaria exterior.
    ─ AJUDEM-NOS! Estamos a ser atacados!

    ─ Entrem! Aqueles insolentes não têm coragem de violar o meu lar. ─ Dito isto, Fernando Barão pegou na carabina e saiu para a vastidão da noite sem hesitar.

   O trio amedrontado refugiou-se no interior da hospedaria. Dominados pelo medo e bastante inquietos, demoraram a detetar a presença da miúda, que estava no hall de entrada envergando um vestido florido em tons claros. Por detrás do balcão prolongado, que teria a altura aproximada dos cotovelos duma pessoa adulta mas que a ela chegava acima dos ombros, afirm
ou:  
    ─ Eu sou a Filipa, sejam bem-vindos! ─ Disse a criança com um sorriso cândido. ─ Desejam um quarto?
    ─ Hum! Sim. Mas talvez seja melhor aguardar pela chegada do errr… ahn… teu pai!?
    ─ O pai não se encontra disponível neste momento. Além disso sou eu que, habitualmente, recebo e acomodo os nossos hóspedes! ─ Pronunciou Filipa num tom que denotava ressentimento.
    ─ Muito bem, muito bem! Então quero um quarto dos mais baratos para mim e minha irmã…
    ─ Eu também quero um quarto - acrescentou o condutor da carruagem que estava lívido. Numa reação automática de defesa do corpo, o sangue tinha-se escapado das extremidades para proteger os órgãos essenciais. - Hoje não conseguirei dormir na carruagem, não com aquelas coisas a rondarem…
    ─ Têm preferência na orientação geográfica dos quartos? Os virados para este são os melhores. ─ Questionou a jovem rececionista, falava mecanicamente, repetindo aquilo que ouvira dizer centenas de vezes.
    ─ É indiferente. ─ Afirmou Rute bruscamente. Inspirando profundamente tentou acalmar-se e recuperar a compostura. ─ Que coisas são aquelas que nos atacaram, sabes? Ao início pensamos que fossem lobos, mas não são.
    ─ Oh! Aqui não há lobos, os peixes comem-nos… - A porta de entrada abriu-se. O vento frio entrou na divisão juntamente com Fernando Barão ainda empunhando a arma e que afirmou casualmente:
    ─ Voltei! Ora bem, agora está tudo tranquilo. Ultimamente estas pestes têm sido um aborrecimento para os habitantes das proximidades. A vizinhança anda em polvorosa.
    ─ O que são eles?
    ─ Apenas um prurido, uma sensação incómoda que evito coçar, mas há alturas em que perco o domínio e... coço. - Afirmou o hospedeiro antes de soltar uma curta gargalhada. - Ah! Não se preocupem mais com eles, aqui estão em segurança. Está a ficar tarde, precisam de passar um resto de boa noite de descanso.
    ─ E os cavalos e as nossas coisas?
    ─ Ficarão em segurança na estrebaria, nas traseiras. ─ Mostrava um ar despreocupado. ─ Irei consigo se o desejar.
    ─ Desejo sim! Sozinho não conseguirei…


Enquanto o cocheiro e o hospedeiro se dirigiram para o estábulo para desemparelhar os cavalos, os irmãos Saraiva subiram ao primeiro andar para se instalarem no quarto que lhes fora atribuído.
    ─ Esperamos que o senhor Luís traga as nossas coisas para cima?
    ─ Eu vou dormir agora, tomo banho amanhã. ─ Respondeu Rute ao seu irmão, sentando-se na cama em madeira maciça trabalhada.
     - Hum! É estranho, o albergue parece descuidado, a casa cheira a mofo, nem sequer têm lenha para aquecer os quartos. - Sentiu um sabor féleo na boca que o fez passar a língua nos lábios.
    ─ Dorme, Afonso. Eu tenho que descansar, estou esgotada.
   ─ Dorme, dorme, não te preocupes com nada…. - Murmurou ele enquanto coçava o queixo. Com a pulga atrás da orelha e uma vela na mão, iniciou a disquisição. Primeiro desceu ao rés-do-chão. No hall de entrada ninguém. A lareira na sala de estar encontrava-se fria. A área de serviço parecia abandonada há bastante tempo. A cozinha em grande felga, tachos e pratos sujos no lavatório, as prateleiras dos armários estavam vazias, excetuando a camada espessa de pó comum a todos os móveis da casa. Pela janela observou a luz amarelada e trêmula, escapando-se pelas frinchas das portadas do estábulo. No interior havia movimentações, sombras esguias interrompiam aperiodicamente a linha de claridade. Afonso, durante alguns momentos, especulou sobre a natureza do bailado de silhuetas a que assistia. De repente um mal-estar inexplicável instalou-se no seu estômago. Correu para pegar o pesado atiçador de ferro e avançou na direção da cavalariça. Com a pulsação acelerada e irregular aproximou-se do edifício. Poisou a mão na porta, antes de entrar, uma saudosa recordação da sua família assomou o seu espírito, sentiu aquela penosa urgência de retornar ao lar, o apelo do berço. A porta rangeu. Abriu-a apenas o suficiente para conseguir passar. A candeia suspensa num prego enferrujado era insuficiente para alumiar convenientemente o espaço. A primeira coisa que prendia a atenção era a condição dos cavalos: estáticos e com olhar vítreo, pareciam estar sob o efeito de hipnose profunda. Afonso fez um esforço para se reconcentrar e perscrutou as sombras. Um pilar retangular obscurecia parte do recinto, o corpo opaco barrava a incidência direta dos raios luminosos. Havia um quê de expetativa na atmosfera. Direcionou a fonte de luz para a zona mal iluminada. Não estava preparado para o que ia ver: Luís estava cravado na parede, uma forquilha prendia-o à madeira. Dentes metálicos perfuravam-no na zona torácica, onde sangue formava pequenas bolhas. O cabo da forca estava partido ao meio, a outra metade saía da boca ensanguentada do cocheiro, alguém a usara para silenciar os seus gritos. Os pés do morto não chegavam a tocar o solo. Afonso sentiu um arrepio lúgubre ao imaginar a inclemência e força descomunal necessária para colocar o corpo, de um homem adulto, cravado na parede como se fosse uma borboleta de coleção. 

    A primogênita dos Saraiva dormia um sono agitado. No estado de entorpecimento, semiconsciência, consegue sentir o vento gelado na sua face, intermitente como se fosse a respiração de um ser imenso e sobrenatural. Um formigueiro no seu subconsciente impede-a de atingir o repouso profundo, nessa altura, abre os olhos e percebe que a janela estava fechada. Aturdida, tenta saltar da cama, mas uma força invisível impede-a. O oculto peso sobre o seu peito aumenta, engrandece, suga-lhe as forças, paralisa-a, amplifica-se até não mais permitir a respiração.

    Afonso, arquejante, entra no quarto. Corre para a irmã que estava prostrada na cama com uma expressão de horror estampada, para sempre impressa no seu rosto. Chama por ela, bate-lhe na face, sacode-a, abre-lhe a boca com a mão, agita-lhe a cabeça, não obtendo qualquer reação. Estava morta. Ele abraça-a. Apesar do choque emocional violento não tem tempo para o luto, pois sente a presença maléfica no quarto, nas suas costas.
    ─ Acreditas na redenção? - Questionou a voz gutural, era Fernando Barão. As lentes dos olhos emitiam um brilho próprio. Afonso, de um modo incognoscível, soube que não lidava com um ser humano, antes um espectro malévolo e funesto, bem mais perigoso que as bestas que os tinham atacado. Num momento de epifania, o jovem lenhador, consegue finalmente ver a imagem completa. As animálias com face de monstro apenas tinham tentado avisá-los. Queriam impedir a sua chegada ao lar do verdadeiro monstro. Agora entendia que teria que escapar daquela casa de morte. Lá fora é que estaria fora de perigo, se ficasse, morreria como todos os outros. Atirou o atiçador como se fosse uma lança (o objeto atravessou a abantesma sem provocar qualquer dano). A provocação e incivilidade foram de imediato respondidas com uma explosão de energia pulsante que arremessa Afonso pelos ares. No entanto o lenhador era mais forte do que aparentava, castigado pelo trabalho constante e duríssimo o seu corpo enfortecera. Aproveita a relapsão para rodar sobre si mesmo e fugir. Lutar seria inútil. Como podia lutar contra algo indestrutível? Algo que não se regia pelas mesmas leis aplicadas aos mortais. Sem olhar para trás bateu em retirada para a segurança das regiões bravias.


    ─ Papá! Posso dar de comer aos peixinhos? ─ Pediu Filipa de olhos esbugalhados.
    ─ Esses bastardos não o merecem! Qualquer dia deito um barril de pólvora no poço, só para aprenderem… - A filha quase que retorquia “Então e o rastilho não se apagaria em contacto com a água!?”, porém, sabendo que a maldade do progenitor nunca se encontrava muito longe da superfície, preferiu afirmar:
    ─ Mas eu gosto de brincar com eles!
    ─ Existem outras brincadeiras mais interessantes. Leva-lhes isto - ordenou Fernando Barão, passando o balde de madeira sanguinolento, no interior estavam quatro mãos e pés humanos. - O resto é para nós.
    ─ Eia! Eles adoram as sobras.

    As gotas de líquido vermelho e viscoso diluíram-se na água. Os seres desconformes emergiram suavemente, quase não perturbando a superfície da água, com as línguas forqueadas sondando o ar.
    ─ O pai está muito zangado com vocês! Ele diz que vocês tentam afugentar os viajantes. “Sem hóspedes, uma pensão, não pode sobreviver!”. Ele diz que vocês são uns ingratos. - Atirou os cotos para o buraco negro. Depois de um momento de hesitação as criaturas mergulharam. - Foi um erro matá-lo, não o deviam ter feito, agora é ainda mais forte- Acrescentou a criança com expressão séria. Depois, saltitando à volta do arco de pedras, iniciou uma alegre cantilena:
  
                        “No fundo do poço tem osso, tem osso
                    Peixinhos chamam, mas eu não ouço, ouço
                  O gato preto da água escura tem medo, medo
                     O velhaco do saco odeia o grande buraco,
              Tombando no abismo profundo, foi ao fundo, fundo
                         No fim do fosso tem osso, tem osso”




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