Monday, September 12, 2011

InterPlantenas

INTERPLANETAS
Insólito
Escrito por Valter Marques


     A vida era monótona para Dolores. Uma monotonia aborrecida e sufocante que a tornava infeliz. A perspectiva de passar o resto da vida naquela rotina constante levava-a ao desespero. O seu marido muitas vezes a avisava:
     ─ Olha que a vida de um soldado em guerra deve ser muito excitante, mas ele trocaria toda a animação pela tua monotonia sem hesitar ─ disse no seu típico tagarelar paciente.   
     ─ Oh, e eu tenho cara de militar? Sou uma dona de casa, uma simples e enfadonha dona de casa. ─ Proferia as palavras enquanto marchava na cozinha de um lado para o outro.
     ─ Tens um papel fundamental na nossa família: cuidar do nosso filho e manutenção deste lar. Obviamente que não temos tudo o que queríamos, mas também não vivemos mal. A nossa vida é boa.
     ─ Estou farta disto. Não entendes? FARTA! Quero viver, não apenas sobreviver. Quero viajar, conhecer sítios novos, viver aventuras e, porque não, passar por um pouco de perigo. A coisa mais arriscada que fiz nos últimos meses foi atravessar a estrada fora da passadeira. Minto! Foi aquela vez que perdi a cabeça e comi um iogurte cujo prazo de validade tinha terminado na véspera. Estou farta!
     ─ Tu sabes que eu gostaria de poder levar-te a todos esses sítios que desejas, mas, infelizmente, com o meu salário não é possível… magoa-me quando falas assim. Quero agradar-te e tu sabes disso…
 
      ─ Sei… ─ murmurou a jovem mãe, enquanto pensava no que tinha de fazer. Decidiu-se. Tinha que sair dali, não aguentava mais, atingira o limite. Saiu da cozinha em passo determinado. Pegou no casaco e na carteira e dirigiu-se para o hall de entrada. Antes de fechar a porta ainda ouviu a voz de Vítor, que dizia:
     ─ Onde vais, querida? Tem calma, tudo se resolve…    
     Vítor era um bom homem, trabalhador, honesto até à medula e um bom provedor para a família. Dolores reconhecia-lhe as qualidades, mas sentia que faltava algo. Desejava mais. O feitio complacente do marido, sempre ávido por agradar, fizera, em certa medida, com que perdesse o interesse e até o respeito por ele; talvez até o amor. Por vezes, quase que desejava que Vitor fosse brusco com ela, gritasse, impusesse a sua vontade ou qualquer outra coisa que demonstrasse que tinha autoridade e personalidade. Ele, porém, tinha uma natureza pacífica, possuía um daqueles feitios incapazes de executar atos violentos e muito menos para as pessoas que amava.

    A noite acercava-se rapidamente. Dolores Sampaio caminhou sem rumo pelas ruas e ruelas da cidade fria. Conscientemente não registrava o que via, a mente estava longe, o seu foco noutro lugar. Num local de delícias, onde a relva era mais verde, o céu mais azul, os raios de sol quentes e aprazíveis e o vento apenas uma brisa refrescante. Um táxi parou à sua frente. Entrou sem hesitar.
     ─ Para onde? ─ perguntou o condutor, espreitando pelo retrovisor.
     ─ Leve-me à estação dos comboios.
     ─ Qual?
     ─ Ahn... não interessa, uma qualquer ─ disse sem entoação ou sentimento.
     ─ Tem a certeza? ─ questionou o homem depois de uma longa pausa. Não obteve resposta, colocou o veículo em movimento.
     A estação de caminhos-de-ferro surgiu em primeiro plano no vidro frontal do automóvel. O edifício mal iluminado pareceu sinistro à senhora Sampaio. Não recordava algum dia ter estado em tal cais de embarque, mas não era importante, serviria aquele como outro qualquer. Novamente sozinha procurou a bilheteira. Encontrou-a no interior, agora só faltava descobrir o funcionário que lhe vendesse o respectivo bilhete. Espreitou pelo guichet, o cubículo encontrava-se vazio. Decidiu aguardar. Provavelmente só apareceria alguém minutos antes da hora de chegada prevista dos comboios. A sua atenção focou-se na figura esguia perto do cais de embarque. Vestia uma gabardine de cor clara e carregava uma pequena mala de executivo em pele. Meditou se deveria ou não interpelá-lo. O porte do homem, a pouca visibilidade ambiente e a ideia de aproximar-se do desconhecido provocavam-lhe uma fraqueza estranha nas pernas.
     ─ Desculpe-me a intromissão ─ disse Dolores com falsa segurança. ─ Estou a tentar comprar o bilhete, mas não encontro o funcionário… não sei se poderá ajudar.
     ─ Se não tem bilhete, não pode estar aqui ─ disse o estranho com uma entoação na voz que parecia algo saído de um bombo.
    ─ Como assim!? Eu quero comprar o ingresso, como já lhe disse ─ respingou a dona de casa. ─ Sabe ou não? Onde posso encontrar o funcionário responsável por essa tarefa.
     ─ Não existe tal cargo. ─  Falava sem interesse. Parecia hipnotizado pela simetria dos carris e das traves de cimento perpendiculares que os uniam. Num paralelismo que contrastava com a desorganização dos inúmeros calhaus assimétricos, espalhados e ajustados uns aos outros pelo passar dos comboios ao longo dos anos. ─ Porém, está com sorte. Quem supostamente iria comigo não compareceu. ─ Sempre sem olhar para a mulher, retirou a mão do bolso e entregou-lhe um pequeno cartão ─ Pode ficar com este, se servir o seu propósito, obviamente.
      ─ Serve. Quanto lhe devo? Terei que o reembolsar.
      ─ Não é necessário. Além disso penso que não teria posses para o fazer ─ proferiu o desconhecido.
     ─ Ah! Ouça! Quem você pensa que é? ─ Começara a mexer na carteira, procurando o dinheiro, quando apareceu o comboio. A máquina poderosa surgira do nada como se tivesse saído de uma curva apertada, que não existia. O senhor da gabardine começou a caminhada em direção às últimas carruagens. Dolores olhou para o bilhete que continha apenas, visivelmente, um número: 4733. Presumiu que seria a identificação da carruagem e respectivo lugar. Como o movimento de passageiros era quase nulo, a composição ferroviária não demoraria a partir da estação. Não querendo correr o risco de ficar a ver passar comboios, subiu a bordo usando a porta mais próxima. Como calculara, o vagão encontrava-se quase vazio, continha apenas um passageiro, ela própria. Teve dificuldade em escolher entre a fartura de lugares vazios. Finalmente decidiu sentar-se na retaguarda. Enquanto isso a locomotiva acelerava, escapando da estação.
     Durante alguns minutos Dolores meditou ao som cadenciado das rodas metálicas pisando os carris. Era como se a composição ferroviária fosse impulsionado por um coração gigante, não mecânico mas de carne. Como era bom, pensou ela, que também as pessoas tivessem carris, linhas orientadoras para se guiarem na vida, levando-as de estação em estação, de local em local sem correrem o risco descarrilar. O que estaria Vítor a fazer naquele momento? Provavelmente aventurando-se na feitura do jantar, enquanto tentava explicar ao filho de quatro anos o porquê da ausência da mãe. Dolores conhecia bem o seu marido. Arranjaria uma desculpa para justificar o seu ato. Ele acreditava que a sua saída era apenas um ato irrefletido e que voltaria a casa quando caísse em si. Porém estava enganado, há muito tempo que aquele desejo a corroia, como um agressivo carcinoma que ia ganhando forças.     Não sabia por quê, mas as mais pequenas coisas e acontecimentos banais começaram a irritá-la profundamente. Era a torneira que pingava na casa de banho; a fechadura da porta de entrada do apartamento, que para abrir era necessário fazer cócegas e sacudir a chave durante desesperantes segundos; odiava as depressões no colchão onde dormia, a mancha escura no teto, as unhas que teimavam em crescer, o cheiro de Vítor e o barulho que ele fazia ao mastigar, o fato de não se sentir mulher e tudo o resto, tudo. Aos poucos sufocava, precisava de respirar, exigia oxigênio, necessitava de tempo para si. Encostou a cabeça à cortina que tapava a janela e deixou-se embalar.
     BRUUM! Dolores desperta com o estrondo. Escuta. Agora que estava acordada, começou a ter dúvidas se ouvira o tal barulho ou se fora um produto do seu sonho. Olhou para a janela e viu o reflexo dela própria e do interior da carruagem. A diferença de luminosidade impedia-a de ver o exterior. Novamente espreitou, desta vez com a face encostada ao vidro e com as mãos em redor, tentando assim obstruir a claridade ambiente. Lá fora apenas escuridão. Trevas. Nada. Apreensivamente, encostou-se na cadeira. Sentia-se incomodada. Algo estava diferente. Percebeu o quê! Era o silêncio. O tuc-tuc característico tinha desaparecido, não havia quaisquer barulhos ou vibrações. No entanto não estavam parados, antes pelo contrário. Como o sabia? Desconhecia. A atmosfera alterara-se, o próprio ar que respirava parecia-lhe diferente. Levantou-se, decidida a tirar a situação a limpo. Percorreu o corredor e experimentou a porta de acesso à carruagem seguinte: não abria. Tentou mais algumas vezes sem sucesso. Na porta oposta obteve o mesmo resultado.
     ─ Dolores Sampaio! Não entres em pânico… ─ murmurou entre dentes antes de esmurrar repetidamente o vidro.
     De novo no seu lugar e emocionalmente agitada, a esposa de Vítor, embalava-se num ritmo nervoso e hipnótico. No estado em que se encontrava não conseguia pensar com clareza. A falta de referências temporais e o confinamento espacial torturavam-na. Na sua mente precipitavam-se ideias e imagens confusas e disparatadas. Tentando debelar o espesso silêncio à sua volta, reza uma cantilena sem parar. Em seguida e sem razão aparente levantou-se e percorreu o corredor da carruagem em ambos os sentidos. Nos flancos espelhados via uma pessoa caminhando e, para lá desta, em terceiro plano, marchava outra e depois mais outra. As silhuetas formavam uma fila infindável e todas eram o seu reflexo. Chegou um momento em que se cruzou consigo mesma. Tinha a impressão de ser outra pessoa, dentro e fora de si. Confusa e cansada escolhe ficar quieta num ponto. A multidão de Dolores prosseguiu a marcha. A simetria e as linhas retas da carruagem começaram a desfazer-se como num sonho, como num pesadelo. Luta contra a alienação, no entanto, numa vaga repentina vem o medo intenso e os tremores e calafrios. Não consegue respirar. O coração agita-se irregularmente, sente-se doente, pensa em Vitor, recorda o sorriso do pequeno Tiago que a fazia sentir-se viva mesmo no pior dos dias, as primeiras palavras, os passeios na areia quente, as brincadeiras infantis, evoca os bons momentos. Desmaia.
     A dor no pescoço e o desconforto geral despertam-na. Não queria abrir os olhos, receava o que estes lhe mostrariam. Queria estar na sua cama, no pequeno quarto do apartamento amarelo esbatido. Consegue reunir vontade suficiente para espreitar. O padrão do tecido listrado em tons castanhos dos assentos da carruagem trouxe-a de volta à crua realidade. Estava muito longe de casa. Novamente sentiu a perda eminente do controlo sobre as emoções. Mas não podia ser, seria forte, resistiria. Levantou a cabeça e endireitou-se. Já não estava sozinha na carruagem. Piscou os olhos várias vezes para ter a certeza que a figura sentada ao fundo e de costas viradas era real. Do lugar onde estava apenas lhe conseguia ver os ombros largos e o estranho casaco com capuz que tapava completamente a cabeça. Tem que fazer um esforço para clarear a mente. Tenta raciocinar com acuidade. Havia uma boa possibilidade de que o estranho ainda não a tivesse visto. Ela estivera estendida nos bancos, se ele entrara na carruagem pela retaguarda, facilmente passaria por ela sem a detectar e se entrara pelo acesso oposto a questão nem se colocava. Agora, o que fazer? Ou continuava naquela condição ou experimentava novamente abrir a porta. A outra hipótese era dirigir-se ao estranho, cuja reação lhe era completamente desconhecida. Hesitando começa a levantar-se. A meio desiste e agacha-se. A figura misteriosa impunha-lhe cautela. Algo no seu íntimo lhe dizia para se afastar dali. Espreitou por entre os bancos: o capucho estava tombado para a frente, pelo ângulo inclinado da cabeça o estranho deveria estar a dormir. Não podia continuar ali agachada e escondida como um rato. Decide investigar e coloca-se em pé. Nesse instante um cão de grandes dimensões surge por detrás da porta no fundo do corredor. O coração de Dolores salta abruptamente no peito e as pernas ficam moles como espaguete cozido, tomba no chão. Tem a certeza que foi vista. Deveria fugir, no entanto hesitava. Ouve vozes a falar, os seres dialogam num idioma desconhecido para ela. Arranja coragem para espiar: o da carantonha cheia de pêlos está erecto e dirige-se num modo agressivo ao homem de capuz que continua sentado. Mas não por muito tempo, este pula do lugar, expondo a face. É outro lobisomem!
     “Tem calma! Isto é apenas um sonho, deve ser por volta desta altura que acordas” dizia a senhora Sampaio a si própria, agachada entre os assentos. Lá à frente, a conversa hostil passara a discussão aberta, depois a uma espécie de ruidosos grunhidos e rosnadelas misturadas com o que pensava serem impropérios. De repente calaram-se. O homem cão puxa atrás uma das garras cabeludas e arremete contra a cabeça do outro. O sangue espalha-se na janela e nas vestimentas do ser decapitado. Em pânico, Dolores, não consegue impedir a saída de um grito. O lobisomem vira o focinho na sua direção, pupilas contraídas e animalescas fitam-na. Desta vez ela não hesita e corre aos tropeções na direção oposta à da besta assassina. Não olha mas sente as passadas possantes no seu encalço. Desta vez não tenta escapar da carruagem. Atira-se contra a porta da casa de banho e fecha-se no interior. Encostada na parede, faz força com as pernas sobre a porta, que lhe parecia ridiculamente frágil para impedir a entrada do seu perseguidor. Preparou-se para o impacto. Todavia, os segundos arrastaram-se e o aguardado embate não acontece.
     No lado de fora, um nariz canídeo fareja a porta, captando as partículas odoríferas. O faro e a audição contam-lhe o que os olhos não podem dizer. O perfume barato misturado com o cheiro a transpiração são como pegadas na areia, que deixam rastro e chamam à atenção como um farol na negrura da noite. Sente a respiração ofegante, sabe que a jovem mulher está aterrorizada. Poderia rebentar a porta sem esforço, porém o ato seria detectado pelo Revisor que, provavelmente, já estaria no seu encalço.
     A Dolores, cada instante que passava era como uma fatia de eternidade que mastigava com dificuldade. Com o passar dos minutos e acréscimo da fatiga, deu consigo a pensar, mais uma vez, se verdadeiramente o monstro existia. Sonhos e fatos reais misturavam-se na sua mente, não os distinguia. Perdera a noção da realidade. Já experienciara no passado pesadelos realistas, mas nunca como aquele, tão vívido. Estava prestes a desistir quando sentiu movimentações no exterior. Momentos depois, falaram:
     ─ Pode sair! ─ ordenou a voz. ─ Saia!
     Não sabia se era do cansaço ou da acústica da casa de banho minúscula, mas aquele tom de voz parecia-lhe ser o do seu falecido progenitor. Embora tentasse focar no problema em mãos, as memórias brotavam num jorro de imagens do antigo: a primeira recordação que tinha de si própria; o sol quente e o inverno frio; os carreiros de formigas, as borboletas e os pássaros; a alegria proporcionada pelo seu primeiro animal de estimação; a primeira bicicleta, o primeiro amigo, o primeiro verdadeiro amigo; as idas e vindas da escola, a escola, o recreio; a solidão das férias; a casa, a sala, o quarto, as refeições em silêncio; a mãe submissa, as mãos fortes e ásperas do pai devido ao trabalho no campo e na fábrica metalúrgica, os avós afetuosos que morreriam de desgosto se conhecessem a faceta incestuosa do filho. Aquela figura paternal que impunha respeito e ministrava a disciplina e que violava repetidamente a filha mais velha. Tivera sorte a Dolores, a diferença de seis anos entre ela e a irmã tinha-a poupado aos abusos. Pois ele não era um pedófilo, apenas um violador que encontrara a extinção na forma de um derrame cerebral que, numa primeira fase, o transformara num demente sem capacidade para satisfazer as suas necessidades mais básicas. Mais tarde, depois de o despir da dignidade, a doença finalmente levou-o para a sala de espera do Juízo Final. Não fosse a morte, prematura em termos de idade, mas à muito aguardada e desejada pela família, também ela teria tido o destino da irmã. Sim, os monstros não eram desconhecidos a Dolores.    
     ─ Quem fala? ─ questionou ela, desassossegada em relação à resposta que poderia obter.
     ─ O Revisor. É seguro sair ─ assegurou com convicção.    
     ─ Não saio! Um monstro peludo anda aí fora e quer matar-me.
     ─ O problema foi resolvido. Agora, a senhora, encontra-se em segurança. Porém, precisamos que saia da instalação sanitária para que a possamos auxiliar ─  replicou ele num tom de voz calmo mas autoritário. A jovem mãe meditou durante alguns momentos encostada à porta. Conformada com a ideia,  respirou fundo e rodou o trinco. A porta rebentou na sua frente, projetando-a para trás. Bate com a cabeça em algo e abate-se. Antes de perder os sentidos e com a vista desfocada vê o animal ereto, mostrando os dentes numa espécie de esgar ou mesmo sorriso. Vai matá-la. Porém, antes que consiga chegar a ela, é projetado por um poderoso golpe que o faz soltar um ganido de dor. Estendida nos sanitários, Dolores, ainda consegue ver o seu salvador: um homem deformado, cujo corpo parece algo resultante da explosão dum necrotério. Cada membro é diferente do outro, como peças de um aberrante puzzle forçadas a encaixarem umas nas outras. A luta continuou.
    Uma forte claridade vinha de fora, transpondo as janelas escuras e espelhadas. A primeira coisa que a senhora Sampaio viu quando abriu os olhos foi a cara do ser ao mesmo tempo cômica e desproporcionada.
     ─ O remédio vai colocá-la saudável ─ assegurou ele enquanto guardava o pequeno objeto metálico no bolso.
     ─ Err…quem é você? ─ perguntou ela a custo.
     ─ Chamam-me Frankenstein. ─ Falava com uma voz semelhante à de uma criança, algo que contrastava com o corpo gigantesco. ─ Ou apenas Frank.
     ─ Estou num pesadelo?
     ─ Não! Está a bordo da composição ferroviária InterPlanetas, com destino à Grande Nebulosa de Fartolon. A CVLC pede desculpa pelo incidente e deseja-lhe a continuação de uma boa viagem.
     ─ Quero sair daqui ─ confessou Dolores, esgotada. ─ Quem és tu? O que aconteceu ao teu corpo? És… humano?
     ─ Sou o Operador de Revisão. O meu corpo é apenas uma ferramenta, como uma farda. Se não a usasse, não me conseguirias ver.
     ─ E as cicatrizes? ─ Observava a macabra amálgama de partes de corpo.
    ─ Nada mais que remendos na farda. Ao longo do tempo foi sendo necessário proceder à substituição das partes avariadas. Trocadas por outras que, embora velhas e usadas, ainda estavam funcionais. A requisição para um novo uniforme foi efetuada, mas com esta crise nos transportes coletivo de longo curso, e consequentes cortes orçamentais, tem sido mais complicado. No entanto, garanto-lhe que esta, apesar de gasta, continua operacional. Embora compreenda que o aspecto dela seja incomodativo para alguns passageiros.
     ─ Não me incomoda. O que tu és por fora, eu sou por dentro…
     ─ Sem dúvida que as feridas invisíveis são as mais profundas e dolorosas. Por outro lado, a cicatriz, é um sinal de regeneração, é uma prova de uma batalha travada e sobrevivida.
─ O que aconteceu ao lobisomem?     
     ─ O problema está resolvido, pode ficar descansada. Temos tido alguns contratempos com os licantropos. É um povo agressivo.
     ─ Sem dúvida ─ disse Dolores com um arrepio na espinha. ─ Quero ir para casa, por favor.
     ─ Esta ainda não é a sua paragem ─ observou o Revisor pacientemente. Depois inspirou profundamente e acrescentou: ─ A vida é uma soma de chegadas e partidas. Começa com a grande chegada e termina com a partida final. Na vida deixamos escapar muitos comboios… e apenas embarcamos nuns poucos, não é?
     ─ Porém o tempo é curto e as viagens são quase sempre iguais. Para onde vamos?
     ─ Em direção às galáxias distantes.
     ─ Deixem-me voltar ─ suplicou Dolores.
     ─ A Terra foi três estações atrás. Um planeta bonito ─ disse Frankenstein antes de olhar pensativamente na direção das janelas. ─ Normalmente não fazemos isto ─ pausou ─ mas as circunstâncias são excepcionais.
     ─ Apenas quero estar com as pessoas que me amam… e eu amo a elas. ─ Dolores Sampaio finalmente conseguia entender.
     Surpreendentemente, ressurge o saudoso barulho metálico. O cadenciado tchuc-tchuc saúda os passageiros. O meio de transporte alienígena aproximou-se da estação, desacelerando até à paragem completa. As portas abrem-se. Dolores levanta-se lentamente e diz:
     ─ Posso ir para a minha casa!?
     ─ É bom voltar a casa, não é?
     ─ Sim, é bom.
    ─ Nunca mais te esqueças disso ─ disse Frank. Dolores nunca mais desaprenderia a preciosa lição.


     Um homem alto de casaco verde com um jota desenhado nas costas entra na carruagem. Frankenstein cumprimenta-o:
     ─ Sr. Valter Marques! Como tem passado?
     ─ Presentemente, tenho passado no futuro ─ disse Valter sorrindo.
     ─ Sempre a brincar. De volta ao lar?
     ─ Sim. Esqueci-me da medicamentação. Deixei os anti-histamínicos em cima do bidé.
     ─ Ainda alérgico ao pêlo de humanos?
     ─ É verdade. E o uniforme novo?
     ─ Está encomendado ─ garantiu Frank com convicção.
     ─ Anda a dizer isso nas últimas dezenas de anos.
     ─ Sabe como é, com a crise… E as escritas? Correm bem?
     ─ Já correram melhor, agora, com a artrite, vão apenas andando.
    ─ Hum! Bem, boa viagem! ─ desejou Frankenstein virando costas. ─ Lá porque são famosos num planeta, pensam logo que são estrelas. As estrelas brilham mais… ─ disse entre dentes enquanto se afastava.
     ─ Obrigado e igualmente ─ rematou o escritor.

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